sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Deus, Papai Noel, Coelhinho da Páscoa...




















... Quando eu vejo a que ponto se chegou nessa história de ateísmo ser “crença justificada na inexistência de Deus”, eu não me privo de lembrar as centenas de discussões que eu já presenciei sobre o tema, bem como a total impossibilidade fazer-se entender quando a discussão gira em torno da finalidade da filosofia para assuntos práticos. E ateísmo é um assunto prático. Trata-se de uma questão de eliminar o que não interfere, não acrescenta nem subtrai e abrir espaço para o que realmente importa. E o que realmente importa em se tratando de nós mesmos é a forma como driblamos nossa natureza agressiva, vingativa, rancorosa, destrutiva, através de condicionamentos impostos. Deus entra então como parte desse condicionamento visando tornar-nos aptos a vivermos em grupos maiores que uma família.

Eliminar a crença nele como “algo além disso” é prático. É ter encontrado sua finalidade e apropriar-se da finalidade, fazer uso da finalidade,dispensando o veículo. O “bem” que podemos fazer então “não vem de Deus” mas de nós mesmos, da apreciação da realidade, da motivação de tornar pessoas menos propensas ao erro em cada situação. O erro nesse caso é impedir ou atrapalhar a realização do outro, é pensar apenas em si mesmo sem enxergar as necessidades dos outros, é não estar aberto ao entendimento do que sejam tais necessidades. E com isso não permitir que todo potencial humano em prol de nós mesmos seja aproveitado para o nosso desenvolvimento como espécie.

O problema todo quando se fala em Deus então é confundir o condicionamento a que estamos sujeitos desde tenra idade nesta porção ocidental-cristã do mundo, com a crença em Deus. O agente tem sido o ser humano desde sempre. A crença ou não em Deus é um detalhe. Ser “bom” ou “mau”, uma opção a despeito de tal crença. Tratar o ateísmo como crença então, entra naquela necessidade humana de fazer com que as idéias caibam no entendimento e não expandir o entendimento para ficar compatível com tais idéias… Dá na mesma quando se quer explicar o que é dobra espaço-temporal pra quem não está a fim de entender a teoria da Relatividade do ponto de vista de um físico. Falar que ateísmo é crença então é coisa de quem não assimila o ateísmo a partir do ponto de vista de um ateu.

O que um ateu faz, seja sabendo disso ou não, é chegar à conclusão da não-necessidade do conceito Deus usado para o condicionamento a que me referi acima. É simples, rápido, prático, sem esforço. Deus é invenção nossa, de nossa espécie, um regente supremo a que todos devemos obediência por imposição de outros humanos assumindo para si mesmos o papel de assistentes desse regente para, e a partir disso, regerem a nossa espécie. Tirar Deus da jogada então é uma consequência direta de quando entendemos o papel dele em nossa sociedade. Não se trata de uma crença na inexistência dele mas da compreensão do que ele representa na vida das pessoas. Portanto, descartar a crença nesse personagem criado à nossa imagem e semelhança, do tamanho de nossas aspirações e entendimento, não se trata de uma crença. Mas da compreensão da não-necessidade de tal crença.

Eu entendo a resistência ao entendimento de algo tão simples… é a incapacidade de perceber os nuances do que de fato é uma crença. Não se crê na inexistência de Papai Noel. Nós sabemos que ele existe como conceito. Não se crê na inexistência de coelhinho da Páscoa. Nós também sabemos que ele existe como conceito. Não se crê na inexistência de Deus. Ele também existe como conceito. MAS… a partir dos atributos racionais de que dispomos, nós dispensamos tais crenças em Papai Noel, Coelhinho da Páscoa e Deus. Nós não cremos neles como entidades reais, como “seres” a que se possa atribuir inexistência… nós os criamos, eles existem. Cabe a nós reduzi-los ao que são de fato: parte de nossos mitos e de nossa necessidade de condicionarmo-nos a não nos destruirmos.

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Excerto de uma discussão levada a cabo aqui.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Mais lenha, por favor...

Munida de archotes, a população inteira do povoado sai em busca daquela "vadia". Muitos ali nem sabem ao certo o que ela fez mas se estão todos unidos em busca da "vadia", é sinal que ela merece ser buscada. Sua casa, abandonada às pressas, é queimada, seus pertences espalhados, sua vida com a qual ninguém antes se preocupou, caiu em domínio público.

Acuada atrás de pilhas de feno nas cercanias do povoado, a criatura é pega, arrastada pela turba em desvario e levada ao centro do povoado. Decidem às pressas qual a punição cabível, aquela que irá "lavar" a "alma" dos presentes, justificando sua captura altas horas da noite. Será despida, molestada sexualmente aos olhos de todos, depois, arrancam-lhe as unhas, esbofeteiam-na, aplicam-lhe paus e pedras, cuspes e ponta pés. Um a um, os acusadores revesam-se na aplicação de penas cada vez mais grotescas até que, depois do último desmaio, em que a criatura não mais responde aos baldes de água, decidem por atear-lhe fogo. É então amarrada em uma estaca, cercada por lenha, algumas touceiras de mato seco.

O fogo então, lentamente, incumbe-se da tarefa de extinguir a vida e os sinais de existência de alguém odiado pela população em peso do povoado. Alguns continuam gritando, na ânsia de verem o horror naquele rosto prestes a ser consumido. Os olhos da "vadia" então abrem-se e, cercada pelo fogo, a criatura põe-se a gritar a todos pulmões, para satisfação da massa popular ali reunida. A "justiça" foi feita. O ribombar distante acusa chuva forte a caminho... um a um, os populares deixam a cena para trás de si. Estão prontos para encarar a vida na manhã seguinte, como se nada tivesse acontecido na noite anterior. Seus "pecados" estão perdoados. A vítima da expiação os levou consigo...

Uma mulher é flagrada batendo em seu cãozinho indefeso. Nesses tempos em que todos podem ter à disposição algum dispositivo capaz de captar imagens em vídeo, alguém no andar de cima de uma casa começa a filmar a sequência de golpes covardes aplicados no cãozinho no quintal que, de tanto apanhar, acaba incapaz inclusive de ganir de dor. Parece uma trouxinha de pelos sendo arremessada contra a parede, o chão, até que não satisfeita, em outro momento, a algoz coloca um balde vazio virado por cima do animal. O video acaba. Quem fez a filmagem, possivelmente a empregada da agressora, decide não levar as evidências diretamente à polícia, sob o risco de não ser sequer levada a sério. Decide por hospedá-lo no Youtube.

Munida de conexão com a internet, a população em peso de redes sociais sai em busca de dados pessoais da agressora do cãozinho. Querem-na viva, de preferência. Numa sequência de milhares de respostas ao video, milhares de pessoas depõem contra a atitude covarde da infeliz que golpeia seu cãozinho na frente de sua filha de 3 anos. Mas a indignação não acaba aí... e, um a um, vão expressando sem pudor o que seriam capazes de fazer com aquela mulher capaz de matar um cãozinho na "porrada". Um a quer empalada viva, o outro faria com ela o mesmo que ela fez com o cãozinho, outros descrevem como a fariam sofrer tendo seus orifícios anal e vaginal penetrados por cabos de vassoura, pedaços de bambu, areia, cavaco de metal... uns falam em extrair-lhe as vísceras com as próprias mãos, outros em arrancarem os olhos, os cabelos, as unhas... em queimarem seu corpo com ela ainda viva. O pior é saber que não se privariam de fazer essas coisas caso lhes fosse permitido. E assim, vingariam a possível morte de um cãozinho com o suplício da agressora, até que inclusive suas cinzas fossem carregadas pelo vento. E todos, "salvos" de seus próprios demônios, voltassem à rotina de suas vidas, depois de extravasarem-nos em sua vítima expiatória da vez...

Possivelmente, uns 1000 anos nos separam do bode expiatório descrito na abertura deste texto. E, no entanto, basta que a indignação contra algum feito de outro alguém venha à tona, lá está o bode da vez. Neste mesmo momento em que dispomos de tantos recursos, em que tanto lutamos contra nossos instintos mais básicos, é assustador saber que ainda somos os mesmos... Para nossa sorte, dispomos também de leis que nos preservam de nossa natureza agressiva, impiedosa, punitiva, como uma bênção. Em compensação, os demônios continuam à espreita dentro de cada um de nós. E onde a aplicação de leis é falha, lá estamos nós fazendo justiça com as próprias mãos, "lavando" nossas "almas" de todo "pecado".

O fato é que é assustador pensar que muitos dos mesmos que expressaram tamanho repúdio aos maus tratos contra o animal teriam coragem de aplicar tantas e tamanhas punições contra a agressora do mesmo animal. Em o nome da "justiça"...

Depois de disporem dos dados da agressora do cãozinho e espalhá-los por toda parte das redes sociais, mesmo sem a possibilidade de supliciar a agressora do animal, a "justiça" foi feita. E... "[...]um a um, os populares deixam a cena para trás de si. Estão prontos para encarar a vida na manhã seguinte, como se nada tivesse acontecido na noite anterior. Seus "pecados" estão perdoados. A vítima da expiação os levou consigo...". Fecha aspas.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Meme, Eu mesmo, Eu

O livro arbítrio sob a luz da memética.
Texto de Susan Blackmore para a New Scientist.


Suspenda seu braço à sua frente. A qualquer momento que você decidir, de sua livre e expontânea vontade, flexione seu pulso. Repita isto algumas vezes, estando certo de que você o faz tão conscientemente quanto puder. Você provavelmente irá experimentar algum tipo de processo de decisão no qual você deixa de não estar fazendo alguma coisa e então decide-se a agir. Agora, pergunte a si mesmo: o que deu início ao processo que conduz à ação? Foi você?

O neurocientista Benjamin Libet, da Universidade da Califórnia em São Francisco, recrutou voluntários para fazerem exatamente o que foi proposto acima. Um relógio permitiu aos voluntários perceberem em que momento exatamente eles decidiram agir, e ao colocar eletrodos em seus pulsos, Libet pôde avaliar o tempo exato do início da ação. Mais eletrodos em seus couros cabeludos puderam reportar um padrão particular de ondas cerebrais chamado de "potencial de reação", que ocorre prontamente antes de qualquer ação complexa e está associado com o planejamento cerebral dos próximos movimentos.

A descoberta controversa de Libet foi que a decisão de agir veio depois do potencial de reação. Parece que é como se não houvesse um "ser" consciente comandando as sinapses e dando início às ações.

Esta e outras pesquisas fizeram-me acreditar que a idéia do "ser" é uma ilusão. Você não é nada além de uma criação dos genes e memes em um único meio. Memes são idéias, habilidades, hábitos, estórias, canções ou invenções que são passadas de pessoa para pessoa por imitação. Eles deram forma às nossas mentes, conduzindo-nos ao desenvolvimento de cérebros grandes e da linguagem porque estes serviram para disseminar os memes. Mas os memes mais brilhantes são aqueles que nos persuadem a pensar que nosso "ser" realmente existe. Nós todos vivemos nossas vidas como uma mentira. Os Memes têm feito com que vivamos assim porque ao dar-nos a ilusão do "ser" eles podem sobreviver e serem disseminados.

O termo meme foi cunhado pelo biólogo Richard Dawkins em seu livro publicado em 1976 chamado O Gene Egoísta, onde explora os princípios do Darwinismo. A idéia de Charles Darwin é simples, apesar de ser mal compreendida freqüentemente. É assim: se os organismos podem variar, se apenas alguns deles podem sobreviver e se qualquer coisa que ajudou-os a sobreviver é transmitida a seus descendentes, então os descendentes serão melhor adaptados que seus pais. Desta maneira, os organismos são gerados pelo processo de cópia e seleção, de acordo com o meio ambiente em que vivam. Como Darwin coloca, se temos variação, seleção e hereditariedade, então deve haver evolução.

Darwin não teve o benefício de nosso conceito moderno de algoritmo, nem da nossa atual tendência de observar tudo através de processos físicos fundamentais da vida em termos de informação (veja "I is the law", New Scientist, de 30 de Janeiro de 1999, p 24). Contudo, ele viu que este processo inconsciente poderia produzir formas sem que houvesse um criador para as mesmas. E foi o filósofo americano Daniel Dennett quem concebeu a idéia do "algoritmo evolucionário", em cujo cerne encontra-se a informação que é copiada ou o replicador.

Na evolução biológica, os replicadores são genes, mas não há motivo para se pensar que não poderia haver outro tipo de sistema evolucionário com outros replicadores. Este foi o ponto de Dawkins--que a idéia de Darwin era muito importante para estar restrita apenas à área biológica--e ele quis algum outro exemplo. Então inventou o meme.

Tudo o que se aprende por cópia a partir de uma outra pessoa é um Meme. Isto inclui seu hábito de dirigir à direita ou à esquerda, comer amendoins torrados, vestir jeans, ou sair de férias. Você não faria nenhuma dessas coisas, ou coisas parecida, se alguém já não as tivesse feito antes. A imitação, diferentemente de outros métodos de aprendizagem, é um tipo de cópia ou réplica. Outros animais podem ser mestres de aprendizagem, assim como os esquilos lembram-se de suas centenas de estoques de comida, ou gatos e cães constroem extensos mapas mentais. Mas isto é aprender por associação, ou tentativa e erro. Apenas através da imitação os frutos do aprendizado são passados de um animal para o outro e os humanos não têm rivais em termos de capacidade de copiarem-se uns aos outros.

Mas os memes são replicadores? Em outras palavras, estariam eles sujeitos ao conceito de algoritmo de variação evolucionária, seleção e hereditariedade? Eu digo que a resposta é sim. Memes são "herdados" quando copiamos as ações de outra pessoa, quando passamos uma idéia ou uma história, quando um livro é impresso, ou quando um programa de rádio é difundido. Os memes variam porque a imitação humana está longe de ser perfeita e as oscilações de memória significam que toda vez que nós recontamos uma estória nós a modificamos em algum detalhe, ou esquecemos algum ponto de menor importância. Por último, existe uma seleção das memórias que arquivamos. Pense em quantas coisas você ouve em um só dia e quão pouco delas você transmite a mais alguém. Pense em quantas idéias científicas você leu e quão poucas serão lembradas por você.

Para compreender o que faz um meme bem sucedido, vamos partir do "ponto de vista de um meme". Imagine um mundo cheio de hospedeiros para memes (assim como os cérebros), e muito mais memes do o número de moradas existentes. Quais memes são mais capazes de encontrar uma moradia segura e serem passados adiante? Memes altamente memorizáveis poderiam fazer isso bem, assim como os úteis (ciência, talvez), e aqueles que provoquem fortes reações emocionais. Aqueles que se encaixam bem com nossas predisposições genéticas devem ter sucesso--daí as fotos sexys chegam em todo lugar e as receitas se espalham pelo mundo

As cartas-correntes, como os vírus, espalham-se porque nelas estão incluídas instruções para passá-las adiante, munidas de promessas ou ameaças. O mesmo pode ser dito dos cultos e religiões--de fato, Dawkins chama as religiões de "vírus da mente". Elas obtém sucesso por causa do truque do qual elas se utilizam para persuadir-nos a copiá-las. Se isto soa como se os memes têm planos e intenções, lembre-se de que o único processo acontecendo é o da seleção. Os memes que são copiados--seja lá por que razão for--permanecem conosco, o resto deixa de existir.

Algumas pessoas desaprovam a idéia dos memes afirmando que os memes não são como genes. Não, eles não são genes. Não podemos separar os memes numa única molécula de DNA como podemos fazer com os genes. Memes também variam enormemente em termos de tamanho de sua unidade efetiva, que vão de algumas notas a uma sinfonia completa ou de uma simples palavra a um livro inteiro. E enquanto os genes utilizam-se do mecanismo de síntese protéica das células para replicarem-se, os memes utilizam-se do cérebro humano como seu dispositivo de cópia.

Então, se tentarmos imaginar analogias restritas entre genes e memes, vamos nos desviar do objetivo. O ponto inicial correto não é a analogia com os genes, mas o princípio do Darwinismo. A partir desta perspectiva, o ser humano é a criação de dois replicadores egoistas, genes e memes, trabalhando juntos. E a partir do momento que observamos desta forma alguns dos mistérios da mente humana começam a fazer sentido.

Por exemplo: por que nós temos uma linguagem, uma cultura complexa e cérebros tão grandes? Estes desenvolvimentos evolucionários não custaram barato. Nós podemos falar somente porque nosso pescoço, boca e cérebro foram completamente reestruturados. Em proporção à nossa massa corporal, nosso cérebro é três vezes maior que o de nossos parentes mais próximos. Este imenso órgão faz do ato de nascer um processo perigoso e doloroso, é difícil de ser estruturado e num humano descansando utiliza algo em torno de 20% da energia corporal, mesmo tendo apenas 2% do peso do corpo. Deve existir alguma razão para toda este gasto evolucionário.

Co-Evolução

Os primeiros teóricos sugeriram que nossos ancestrais de cérebros maiores sobreviveram por que eles eram os melhores em matéria de caçar e achar comida, enquanto teorias mais modernas enfatizam complexas pressões sociais. Por exemplo, a hipótese da inteligência Maquiavélica sugere que nossos ancestrais precisaram de um cérebro maior a fim de enganar os outros, detectar logro, e lembrar-se de quem fez o que a quem (veja "Liar! Liar!", New Scientist, 14 February 1998, p.22). De acordo com o psicólogo Robin Dunbar da Universidade de Liverpool, a função da linguagem é tagarelar, e assim a tagarelice é um substituto para os grunhidos a fim de manter grandes grupos sociais juntos. Outras teorias enfatizam o uso de símbolos e sua importância na comunicação.

Todas estas teorias têm alguma coisa importante em comum. Elas presumem que a função última do cérebro humano e da linguagem é servir aos genes. Se você for um Darwinista pode pensar que esta é a única resposta possível porque o desenvolvimento de organismos destinados a uma função somente pode ser o resultado da seleção natural trabalhando através dos genes. Mesmo assim, isto seria ter uma visão muito estreita do Darwinismo, já que os genes não são necessariamente os únicos replicadores. Uma vez que você admita a idéia de que os memes tem estado co-evoluindo com os genes, uma nova possibilidade abre-se--a de que o cérebro humano e a linguagem evoluiram não para disseminar genes, mas para disseminar memes.

Pode ter sido assim: Membros de uma espécie primitiva de hominídeos adquiriram a difícil e rara habilidade de imitarem-se uns aos outros. A princípio, eles imitaram coisas importantes para sobrevivência, assim como novos modos de carregar comida, caçar ou fazer ferramentas. Uma vez que estas habilidades ajudaram-nos a sobreviver, fez sentido a todos os demais imitarem os melhores imitadores e também tentar unirem-se, casarem-se com eles. Isto significou que os genes dos bons imitadores difundiram-se e, já que a imitação é difícil e requer um cérebro grande, o tamanho cerebral aumentou.

E tão logo os primeiros humanos tornaram-se imitadores mais hábeis, qualquer meme que fosse bom em ser copiado, por qualquer razão, tenderia a ser melhor difundido. A prática de copiar sons para comunicação tornou-se um dos mais úteis memes para os humanos. Sons podem ser usados para transferir memes para muitas pessoas de uma só vez. Se ele puder ser agrupado em unidades distintas--assim como acontece com as palavras--então a fidelidade das cópias é aperfeiçoada e os memes serão difundidos mais adiante e mais facilmente sem serem corrompidos.

Se as variações na ordem das palavras puder ser copiada, então mais espaços para os memes são abertos, permitindo que mais memes sejam difundidos. Assim, com as pessoas tanto imitando como tentando unir-se aos melhores imitadores, a habilidade de copiar palavras complexas em ordem precisa será disseminada, tanto memeticamente quanto geneticamente. Em outras palavras, pelo que poderíamos chamar de "direção memética", os memes pressionam os genes a criarem aparatos ainda melhores a fim de disseminá-los. Isto significa grandes cérebros "moldados" especialmente para a linguagem.

Este processo pode não parecer familiar, mas de fato alguma coisa similar aconteceu muito tempo atrás, quando os genes co-evoluiram com os mecanismos celulares que os copiam. Em seu novo livro "The Origins of Life", John Maynard-Smith e Eörs Szathmáry, impelem-nos a ver a vida em maior escala, começando a partir das primeiras e mais simples moléculas replicadoras. Eles descrevem todas as maiores mudanças na forma como a informação é transmitida, copiada e acumulada. O aparecimento de memes pode ser visto como o último estágio neste processo evolucionário, o que explica o aparecimento de uma espécie capaz de linguagem e cultura complexas. Nós somos máquinas de memes.

E mais: este processo ainda não parou. Ele ainda está criando novos dispositivos de cópia de memes. A partir do momento em que a linguagem humana tornou-se um vasto sistema de transmissão de memes de alta fidelidade, ela inventou a escrita para permitir a estocagem de memes. Agora, telefones, máquinas de fax, copiadoras, computadores e a Internet, todos vêm incrementando a velocidade e facilitando a replicação dos memes. Nós podemos pensar que inventamos todas estas máquinas para nossa própria conveniência, mas uma vez que os memes têm continuado a progredir, estes dispositivos - ou alguma coisa como eles - são inevitáveis. A real força que direciona a evolução é o algoritmo evolucionário. E os reais beneficiários não somos nós, mas os memes egoístas.

Da mesma forma que os genes egoístas, agrupam-se juntos visando protegerem-se mutuamente, e desta forma, eles propagam-se melhor em grupos do que quando sozinhos, dando origem assim a complexos de memes, ou memeplexos. Memeplexos incluem linguagens, religiões, teorias científicas, ideologias políticas e sistemas de crença como a acupuntura ou a astrologia. Da mesma forma que os memes, os memeplexos difundem-se desde que haja alguma razão para que eles venham a ser copiados. Alguns são verdadeiros ou úteis, outros são copiados apesar de serem falsos.

Estes enormes memeplexos, com seus variados meios de propagação, formam o substrato de nossas vidas. Há ainda um memeplexo, talvez o mais poderoso deles que nós prontamente identificamos, que é o nosso próprio conhecido "eu". Como outros animais, nós temos uma imagem corporal--um plano de nossos corpos, utilizado para organizar sensações e planejar ações habilidosas. Também temos, assim como outros animais o possuem, a capacidade de reconhecer outros indivíduos e compreender que eles também têm desejos e planos. Até agora tudo bem--mas agora adicionamos a habilidade de imitar, o uso da linguagem e a palavra "eu".

Cerne do Euplexo

Em princípio, "eu" pode significar apenas "este corpo", mas logo este significado começa a mudar. Nós dizemos "eu gosto de sorvete", "eu não aguento fazer compras no shopping", "eu quero ser famoso", ou "eu acredito em Papai-Noel". O "eu" não se refere tão somente a um corpo, antes refere-se a um imaginário "ser interior" que tem intenções, posses, medos, crenças e aspirações.

Este "eu" é o cerne do euplexo. E todos os memes em nosso euplexo prosperam porque trabalhamos para defendê-los em argumentos, para promovê-los em discussões, talvez escrever a respeito deles em livros e artigos. Desta forma, estes memes relacionados ao eu têm sucesso onde outros falham e então os euplexos desenvolvem-se.

Uma vez que o eu começou a ser formado, ao ser confrontado com novas idéias ele emite um "Sim, eu concordo", ou "Não, eu não gosto disso". Embora cada eu seja único em um corpo que ele descreve como sendo "meu" e as idéias são reforçadas neste sentido, estas idéias todas são memes e o eu oferece a elas um paraíso seguro.

Penso que a neurociência moderna deixa claro que o eu não pode ser o que parece. Nós podemos sentir como se tivéssemos um pequeno "eu" dentro de nós, que tem sensações e consciência, que vive a minha vida e toma as decisões por mim. Mesmo assim esta idéia não é válida ao ser confrontada com o que se sabe a respeito do cérebro. Olhe para dentro do cérebro e o que é que se vê? Não há uma central, dentro da qual todas as impressões chegam e de onde outras partem. Antes, o que existe é um maciço sistema de processamento lidando com inúmeras informações ao mesmo tempo, onde muito poucas alcançam a consciência.

Pode parecer como se "minha" consciência desse início às ações deste corpo mas, como as experiências de Libet demonstram, o estado de consciência demora cerca de meio segundo para surgir, de longe, um tempo enorme para que ele inicie reações em um mundo de mudanças rápidas. E o cérebro está constantemente sendo mudado por tudo que acontece a ele, então "eu" não sou o mesmo que era quando eu tinha 10 anos ou mesmo há alguns momentos atrás.

Existe uma grande e venerável tradição de pensadores que rejeitaram a idéia de um eu real e persistente. Buda declarou que as ações e as consequências das mesmas existem, mas que a pessoa que está agindo não existe. De acordo com a doutrina Budista, o eu está mais para uma construção sempre sendo modificada do que para uma entidade sólida. O filósofo do sec. XVIII chamado David Hume, comparou o eu com um calhamaço de sensações amarradas juntas por uma história em comum.

Utilizando-se de metáforas mais modernas, Dennett argumenta que o cérebro constói múltiplos esboços do que está acontecendo enquanto as informações fluem através de seu sistemas de rede paralelos. Um desses esboços torna-se a história que contamos para nós mesmos e inclui a idéia de um autor dessa história ou um usuário da máquina virtual do cérebro - consciência é uma "ilusão benigna de usuário". Então, antes de uma entidade permanente que persiste, o eu pode ser mais como uma história a respeito de um ser que realmente não existe.

Acredito que estas idéias têm implicações na forma como vivemos. Da mesma forma que a sociedade torna-se mais complexa e os memes difundem-se mais rapidamente e vão mais longe, nossos "eus" tornam-se mais complicados. A infelicidade, o desespero e as doenças psicológicas de muitas pessoas do mundo moderno podem refletir o fato de que o aumento do número de memes está forçando nossos não tão flexíveis cérebros a construírem um falso "ser" para sua própria propagação. Pode ser que a ilusão de usuário não seja tão benigna no final das contas. Alguns poderiam ainda dizer que a crença em um "ser" permanente é a causa de todo sofrimento humano - de medo, ciúmes, ódio e crueldade.

Mas é possível viver sem a ilusão? Um jeito seria acalmar a mente. Técnicas como a meditação podem freiar os memes que estão constantemente competindo pelo espaço em nosso próprio cérebro, forçando você a manter-se pensando. Treinamentos de meditação de longa tradição demonstram ser possível fazer isso, ao afirmarem que anos de prática podem trazer o esvaziamento, compaixão e claridade da mente. Meditação simplesmente consiste em sentar-se tranqüilamente e limpar a mente de todos os pensamentos, e então, quando mais deles aparecerem, apenas deixá-los ir.

A Meditação é por si só um meme, mas é, se você assim o permitir, um meme-limpador de memes. Seu efeito não é impedir toda a consciência de si mesmo mas antes criar uma consciência que é mais espaçosa e aberta, e parece, talvez paradoxalmente, ser sem um "eu" para experimentá-la.

Se esta análise memética está correta, as escolhas que você faz não são feitas por um ser interior que tem livre arbítrio, mas são apenas a conseqüência de replicadores competindo em um meio ambiente particular. Neste processo eles criam a ilusão de um "ser" que está no controle.

Dawkins finaliza seu livro "O Gene Egoísta" com esta famosa citação: "Nós, sozinhos na Terra, podemos nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas". Portanto, se tomarmos a idéia dele a respeito dos memes seriamente e a levarmos a sua conclusão lógica, concluímos que não resta ninguém para rebelar-se.

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Nota: Esse texto foi traduzido por mim em 2003 para o então site da STR. Não quero que se perca. :)